Os botos do rio Madeira

Por: Eduardo Franco Berton
e Gustavo Faleiros

As centrais hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio no maior afluente do rio Amazonas se transformaram em um experimento evolutivo em tempo real, isolando populações de botos da Bolívia e do Brasil.


delfin

Eles são os senhores do rio, de cor rosa e resplandecentes, enquanto deslizam pelas águas turvas do alto rio Madeira. Desde sempre, esse poderoso afluente, o maior do rio Amazonas, tem sido o seu lar.

No passado, a aura mitológica que envolveu o mundo desses botos permitiu que ganhassem uma espécie de respeito nas comunidades ribeirinhas, de indígenas e pescadores de distintos lugares da Amazônia boliviana. E, de certa forma, o ajudou a se salvar da caça indiscriminada.

Várias dessas lendas mostram o boto boliviano (Inia boliviensis) como um 'sedutor' que conquista as mulheres dos povoados, as quais, uma vez apaixonadas, desejam passar todo o tempo junto ao rio, até acabar se atirando nele para estar sempre ao lado do seu amado boto.

Suas características únicas -- uma maior quantidade de dentes, um crânio menor e um corpo de aspecto maciço -- os distinguem de outros botos de água doce. Sua cor, um tom de rosa claro que brilha ao sol, os faz venerados.

Mas essa popularidade local não tem sido suficiente para salvá-los das grandes ameaças enfrentadas hoje por causa das barragens do rio Madeira.

Boto boliviano (Inia boliviensis)

delfín rosado radiografía
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Empobrecimento genético

Adn delfín

A diferença em relação ao seu parente mais próximo –Inia geoffrensis - ocorreu graças às barreiras naturais - cachoeiras e corredeiras - que isolaram há milhares de anos parte da população. Enquanto o I. geoffrensis é encontrado na Venezuela, na Colômbia, no Peru, no Brasil e no Equador, os I. boliviensis, como seu próprio nome indica, estão presentes somente na Bolívia.

Especies de delfines

No entanto, segundo estudos mais recentes, esse isolamento natural nunca foi um confinamento definitivo, pois os botos podem fazer migrações regionais e visitar seus parentes mais próximos que vivem sob as corredeiras do rio Madeira. Quando se encontram, os dois botos podem até mesmo se acasalar, permitindo uma hibridação da espécie.

Mas a construção das barragens hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio há aproximadamente uma década na bacia do rio Madeira isolou definitivamente o Inia boliviensis do seu parente, o Inia geoffrensis, deixando inclusive uma população de botos confinada entre as duas grandes barragens. Essa é uma das múltiplas consequências desse tipo de infraestrutura nos ecossistemas amazônicos.

Rio Madeira, mapa

Localizadas no Estado de Rondônia, no Brasil, a algumas centenas de quilômetros do Departamento de Beni, na Bolívia, as barragens de Santo Antônio e Jirau começaram a operar em 2012 e 2013, respectivamente. Juntas possuem uma capacidade de mais de 7300 MW, o que as converte nas maiores hidrelétricas já construídas em um rio amazônico ocidental, cuja origem se encontra nos Andes.

Seus primórdios remontam há pouco mais de uma década, quando, em 2008, o governo do então presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), concedeu à iniciativa privada o direito de construir duas grandes barragens hidrelétricas no rio Madeira.

Río Madeira 2018
Río Madeira 1984

Os próprios assessores técnicos do órgão ambiental brasileiro, o IBAMA, chegaram a desencorajar a construção das usinas, devido ao enorme impacto que causariam nas espécies de peixes migratórios, especialmente aos grandes bagres. Mas o governo Lula ignorou os pareceres dos seus técnicos e seguiu em frente.

Como medida de mitigação, as duas usinas implantaram sistemas de transposição de peixes. Em teoria, isso garantiria que as espécies migratórias pudessem continuar transitando pelas águas do Madeira. No entanto, nenhum desses sistemas foi projetado para o fluxo dos mamíferos aquáticos, como os botos.

Assim alertou o artigo publicado em janeiro de 2014 na revista acadêmica Conservation Genetics, no qual pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) afirmaram que “recentemente foram construídas duas barragens na região das corredeiras; nenhuma delas possui um mecanismo para manter a conectividade entre as regiões situadas rio acima e abaixo e, juntamente com as mudanças antropogênicas no regime hidrodinâmico e na ecologia fluvial, provavelmente terão graves consequências no longo e curto prazos para o I. boliviensis e outros táxons aquáticos”.

E as "graves consequências" sobre as quais os cientistas da Universidade Federal do Amazonas e do INPA alertaram, também foram apontadas por pesquisadores do Instituto Mamirauá e da WWF do Brasil, após revisarem as opiniões e os pareceres técnicos do Ibama, durante e após o licenciamento ambiental das duas barragens. Foi assim que esses pesquisadores revelaram que existe atualmente uma população de cerca de 50 a 100 botos confinados entre Jirau e Santo Antônio.

Ao longo do ano de 2012, quando as distribuições geográficas do Inia boliviensis e Inia geoffrensis não eram bem conhecidas, pareceres feitos pela empresa de Jirau indicavam que a construção da represa poderia facilitar um contato mais intenso entre as duas espécies, algo que ocorreria com a inundação das barreiras naturais que as separavam, ou seja, as cachoeiras e as corredeiras. Em outras palavras, o isolamento milenar do Inia boliviensis acabaria pela força.

Os estudos genéticos realizados por Jirau durante 2012 demonstraram inclusive que, antes do fechamento das comportas, indivíduos Inia boliviensis já eram vistos rio acima e abaixo das cinco grandes cachoeiras, o que indicaria, portanto, que a barragem não representaria obstáculos intransponíveis. Assim, naquele momento, os técnicos consideraram não ser necessário adotar medidas de mitigação.

No entanto, um parecer técnico de 2018 elaborado pela própria empresa concessionária de Jirau, a Energia Sustentável do Brasil (ESBR), confirmou que a barragem promoveu o isolamento das populações de Inia boliviensis justamente rio acima. E pela primeira vez cogitou “solicitar à ESBR que inclua no projeto executivo de conservação da fauna, que será apresentado ao IBAMA, ações de compensação ambiental relacionadas a esta população de cetáceos isolada entre as duas barragens".

E o que ocorre quando uma população de botos fica confinada entre as barragens? Consultamos a bióloga Miriam Marmontel, uma das principais pesquisadoras de cetáceos no Brasil, do Instituto Mamirauá. Ela destacou que, embora se saiba muito pouco sobre a situação desses botos, esse tipo de confinamento representa um empobrecimento genético que, no longo prazo, os condena a desaparecer. "São relativamente poucos animais e a tendência é que adoeçam, não sabemos em quanto tempo".

Miriam Marmontel

E ainda que várias notas técnicas do Ibama solicitassem aos empresários um monitoramento constante das populações de botos que ficaram confinados por causa das hidrelétricas, os pesquisadores consultados para esta reportagem afirmam que até agora não existe um verdadeiro esforço de vigilância por parte das empresas.

Procuradas, as empresas minimizaram os impactos causados. No caso de Santo Antônio Energia, responderam ao nosso pedido de informação indicando que as análises anteriores mostravam populações apenas nas águas rio acima da usina, e não entre as duas barragens, o que, segundo eles, não impediria os botos de se reproduzirem.

A empresa, por meio da sua assessoria de imprensa, também respondeu que:

"Santo Antônio Energia analisa a possibilidade de realizar um monitoramento populacional ou uma análise genética dessas espécies, para saber se o número de indivíduos se mantém constante e se há viabilidade de reprodução entre eles. O monitoramento da espécie depende da autorização do Ibama”.

No caso do consórcio ESBR, proprietário da usina de Jirau, a nota de resposta enviada por sua assessoria de imprensa reduziu a importância ao que eles mesmos afirmaram em 2018, pois destacaram que, até o momento, seus monitoramentos não indicaram nenhum tipo de problema que estivesse afetando os botos.

“[A empresa] vem cumprindo com os requisitos de licenciamento ambiental, com a renovação da sua licença concedida em 2019 pelo IBAMA por mais dez anos. Cumpriram-se devidamente as ações indicadas na licença, assim foram realizadas dezenas de campanhas de monitoramento na Área de Influência Direta, verificando a existência de apenas uma espécie de boto, Inia boliviensis, única espécie presente neste trecho do rio Madeira”.
  • “São relativamente poucos animais e a tendência é que adoeçam, não sabemos em quanto tempo”.

    Bióloga Miriam Marmontel

  • "Santo Antônio Energia analisa a possibilidade de realizar um monitoramento populacional ou uma análise genética dessas espécies, para saber se o número de indivíduos se mantém constante e se há viabilidade de reprodução entre eles".

    Santo Antônio Energia

  • “...Foram realizadas dezenas de campanhas de monitoramento na Área de Influência Direta, verificando a existência de apenas uma espécie de boto, Inia boliviensis, única espécie presente neste trecho do rio Madeira".

    Consórcio ESBR